terça-feira, 24 de agosto de 2010

Hora de pensar na democracia

Mauro Malin

Observatório na TV mostrou em 18 de agosto mais um episódio do confronto aberto entre as Organizações Globo e o Grupo Folha. Nesta história, infelizmente, não há heróis, nem santos, nem mocinhos. Mas a Folha - "hipócrita e farisaicamente", como pretende Evandro Carlos de Andrade, diretor de jornalismo da TV Globo, ou não - levanta a questão crucial: a democracia está ameaçada.

E não está ameaçada apenas pelo virtual monopólio de TV aberta exercido pela Rede Globo, como disse Otavio Frias Filho, diretor da Folha, no programa da TV Educativa. Está ameaçada em boa medida porque a mídia, instrumento indispensável ao exercício da democracia, é despreparada.

Existe um confronto muito maior do que Globo X Folha: é o confronto da imprensa como um todo com as exigências atuais do processo político em regime democrático. Decorre de sua perda de representatividade no terreno da cidadania e de sua incapacidade de exercer um papel político democratizador - incapacidade de irrigar um terreno legal e legítimo para o reconhecimento, a discussão e a resolução dos conflitos.

Não é só no Brasil, mas é grave no Brasil, cujas instituições são cronicamente frágeis e onde qualquer tentativa de chamar os meios de comunicação à razão é exorcizada como proposta de censura (notar que existem razões, sim, para suspeitar de velhos e novos pendores autoritários).

Ameaças

Nossa desnorteada imprensa enfrenta hoje ameaças sérias à continuidade do processo político em regime democrático. Eis algumas das mais evidentes.

Primeira. Será muito difícil que os meios de comunicação brasileiros, com sua legitimidade arranhada por reiteradas demonstrações de falta de lisura política, desprovidos da fibra para se colocar como instituições da democracia, consigam enfrentar a avalanche de baixarias que se anuncia na campanha eleitoral. Uma mídia firme e consciente poderia mobilizar a opinião pública para reagir às apelações e conter os ensandecidos. Mas estamos longe disso.

No terreno propriamente político, o PT ensaia denunciar o processo como fraude. Que a oposição é vítima das preferências da mídia pela situação, só não vê quem não quer, e é bom que os prejudicados esperneiem. Mas daí a impugnar todo o processo vai uma senhora distância. Brizola, experiente, já pensa no passo subseqüente, cujo simples anúncio, se fosse acatado, contaminaria retrospectivamente todo o processo: uma contestação aos resultados, porque o voto eletrônico "é virtual, muito difícil de conferir".

Segunda ameaça. O MST, cujo programa de ação não se enquadra nos chamados marcos constitucionais vigentes, poderá abandonar em breve o low profile para o qual resolveu recuar. Voltou à baila o julgamento de José Rainha num processo em que é acusado por homicídio. A imprensa não consegue tratar as ações do MST sem ser por elas manipulada ao procurar manipulá-las.

Terceira ameaça. O quadro econômico complica-se a cada semana. Bolsas asiáticas, Japão, Rússia: as crises se encadeiam. Não há crescimento econômico nos centros onde se forma a opinião pública nacional, mas desemprego, violência e medo. Na melhor das hipóteses (e vamos torcer ardorosamente por ela), agüentar o tranco exigirá do governo a imposição de novos sacrifícios, para os quais o povo não está preparado. A imprensa tem recuado de seu papel "cívico" nesse campo em benefício de uma politização cada vez mais selvagem das manchetes sobre economia.

Deslocamento

Não quer dizer que estejamos às vésperas de um golpe de Estado. Mas a política nacional desloca-se progressivamente para um curso autoritário – onde até agora só se enxergava vigência das franquias democráticas. Confrontado com os padrões históricos do país, o baixo interesse em participar do processo eleitoral – cada vez mais patente até nas fileiras do PT - reflete uma deterioração indisfarçável.

É emblemática a seguinte frase da propaganda eleitoral:

"Paulo Maluf não é nenhum santo, mas faz. E não é isto que é importante?"

E no slogan-réplica de um ex-governador: "Quércia faz mais que os outros".

O papel dos meios de comunicação na democracia, em condições normais de temperatura e pressão, é contrapor-se às tendências antidemocráticas. Mas no momento a imprensa nem sabe direito se ainda é o que deveria ter sido – empresa de jornalismo – ou se já é o que pretende ser, um híbrido de vendedora de informações, operadora de telecomunicações, produtora de entretenimento, metida eventualmente em outros negócios.

Na consideração da herança que as atuais gerações vão deixar, o mais importante são as instituições e os valores morais que agregam o povo. A última ditadura foi o caldo de cultura do despreparo atual do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, da mídia e do eleitor. No ambiente de 64 decolaram as carreiras - em campos opostos – dos dois ex-governadores paulistas que "fazem". Assim como as do Lula que não queria ser candidato em 1998, do presidente Fernando Henrique que não mede as conseqüências de seu esforço continuísta - e de quase cem por cento dos donos de veículos de comunicação e dos jornalistas que, no comando das redações, mostram-se agora incapazes de questionar a natureza das tarefas que lhes são atribuídas e resistir ao papel que lhes é destinado.

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