sexta-feira, 18 de junho de 2010

A crise do parlamento

Do Valor

O desiludido utópico

Rosângela Bittar, de Brasília
18/06/2010

O deputado mineiro Paulo Delgado (PT) disputa em outubro, aos 59 anos, o sétimo mandato de deputado federal. Professor e sociólogo, é um político reconhecido por exercer a tarefa parlamentar sem perder as rédeas do pensamento que o faz um crítico agudo da instituição a que pertence. À distância da omissão, porém, pois Delgado não choraminga em berço esplêndido: é autor ou coautor de leis e resoluções que tentaram organizar e moralizar a Casa onde exerce o mandato que lhe foi dado pelo eleitor.

Por exemplo: é um dos autores do artigo 37, parágrafo 1º da Constituição Federal, que proíbe propaganda pessoal dos governantes, um dos problemas que denigrem a política. É autor da lei das cooperativas sociais, que regulamenta o trabalho das pessoas em desvantagem, e da lei da reforma psiquiátrica, que dispõe sobre o tratamento aberto dos doentes mentais. Desta, se orgulha de ter levado adiante uma proposta que nasceu totalmente da sociedade.

Autor do projeto de lei da responsabilidade educacional e do projeto de lei que limita o uso da propaganda pelo Estado - novamente aqui está o parlamentar às voltas com a propaganda que deturpa o funcionamento das instituições - e relator do Tratado de não Proliferação de Armas Nucleares (TNP). Delgado é autor do projeto de lei que regulamenta a terceirização no Brasil.

E, sobretudo, um trabalho de resultados claros no conjunto de resoluções e leis que tentaram levar alguma disciplina ao parlamento, alguma ordem ao exercício de suas atribuições, algum constrangimento aos que não se preocupam com questões éticas. Foi autor, nessa linha de trabalho, do dispositivo constitucional que cassa o mandato do deputado ausente e do projeto de resolução que cassou, com grande repercussão à época, o mandato dos deputados Felipe Cheid e Mario Bouchardet, na Constituinte, por ausência ("lei dos gazeteiros").

Identificado com os temas da educação e das relações exteriores, receberam sua participação dezenas de trabalhos do parlamento nessas áreas. A propósito do desencanto do eleitor e de alguns políticos com a vida parlamentar, o deputado teve com a seguinte conversa com o Valor:

Valor: Depois de seis mandatos e preparando-se para o sétimo, tem uma avaliação sobre a desilusão de muitos com o parlamento e a desistência de poucos a seguir disputando eleições?

Paulo Delgado: A desilusão é uma não escolha e também um grito de alerta. A política se complicou para políticos independentes e que defendam a autonomia dos eleitores. O campo democrático do diálogo livre e do debate com a sociedade diminuiu, substituído pela oferta de tudo sob o controle do Estado. Os partidos políticos, cada vez mais empresas privadas lucrativas, incentivam isso do Estado total, pois são sustentados por ele. Muitos eleitores também. Seu voto tem dono e é usado para pagar compromissos. A desculpa é sempre obra, verba, emenda, liberação, orçamento. Ou seja, obrigações constitucionais do Estado viraram negócios eleitorais de parlamentares. Quem testa a desilusão de um político é o eleitor. Ela tem muito a ver com a eficácia do parlamentar em tempos de novos valores da eficácia.

Valor: Como resumir a razão essencial da desilusão?

Delgado: O que está desiludindo é o esgotamento do modelo de parlamento e a ação parlamentar que não se renovou e aceitou a perda do poder de formulação e condução do debate nacional.

Valor: Tendo sido exceção, um parlamentar que conseguiu exercer os seus mandatos fazendo leis, qual a saída para o parlamento voltar ao seu eixo, retomar sua função constitucional?

Delgado: Ser autor de muitas das leis federais desde a Constituição de 88 que criaram, melhoraram ou humanizaram o padrão da política pública em nosso país pouco importa hoje. O formulador está perdendo a batalha para o entregador. Pois sem cheque ninguém acredita. As emendas parlamentares passaram de R$ 3 milhões para R$ 12 milhões, distorção que nos faz ordenadores de despesa e dependentes do Executivo. E o Congresso Nacional, que já era uma casa de despachantes de luxo dos prefeitos, agora virou a própria câmara de vereadores federais. Nos Estados a coisa é pior, pois também nenhuma assembleia é independente como poder.

Valor: O papel do parlamentar teria que passar por uma nova concepção?

Delgado: Claro que é essencial, sendo governista ou não, contribuir para a boa gestão municipal, e os bons prefeitos existem. Mas não centralizando tudo, projetos e recursos, na mão dos governos estadual e federal. A autonomia do poder municipal morreu e levou junto a autonomia da política parlamentar em relação à formulação de projetos e leis. É o deputado homogêneo num país complexo e continental diante de um eleitor em liberdade assistida.

Valor: As dificuldades de reeleição atingem mais deputados que insistem em ficar nos temas mais reflexivos e nacionais ou há também falta de votos para os despachantes?

Delgado: Deputado bom, hoje, é quem aparelhou um ministério ou uma secretaria estadual. E não há mais exceção em nenhum partido político. Até dar bola está dando voto. Quem privilegia mais o debate, a formulação, a opinião, os temas mais reflexivos ou a elevação da qualidade e justiça das leis perde cada vez mais eleitor. Ou seja, é o tempo da ênfase do político do dia a dia, muitas vezes predador, e não do que tem acumulação e moderação de apetite, considerado sonhador ou fora de moda.

Valor: Em outras palavras, é a vitória do clientelismo...

Delgado: Só que falta horizonte à prática política clientelista para entender que a elevação do padrão material de vida sem a correspondente elevação do padrão espiritual não sustenta a democracia da nação. É só olhar o espectro dos transtornos afetivos na vida familiar, o crack e a violência crescente. E ainda, muito da má conduta pública é alimentada pela prevalência da ultra-regulação do Estado sobre a sociedade sem autonomia. É preciso dar modernidade plena ao progresso.

Valor: Qual a razão de termos chegado a esse progresso material com regressão espiritual?

Delgado: Não se inventaram instituições novas capazes de responder aos desejos de autonomia, liberdade e co-responsabilidade pública e privada. É preciso continuar lutando pela modernização das instituições e reinventá-las em três direções: desinstitucionalizar a informalidade; formalizar o padrão de intermediação de interesses; dar constitucionalidade, universalidade e legalidade à conduta pública.

Valor: Essas observações parecem distantes da imagem que se tem hoje, não só do poder Legislativo como dos demais poderes, Executivo sobretudo. Parecem todos funcionar movidos apenas a propaganda e marketing, sem maiores compromissos com novas práticas.

Delgado: Na política brasileira o passado não passa. Desde a Constituinte defendo diminuir a força e o papel da publicidade e da propaganda em política. Só sou a favor da orientação de caráter educativo. A publicidade política está assentada no mito da falsa clareza, do entorpecimento do cidadão com a politização de tudo. A política virou clichê. O tempo de televisão gratuito hoje é um negócio privado de donos de legendas. Retire a publicidade e a propaganda da política e a verdade deixará de ser vista como o êxito de uma campanha publicitária, como virou. Para muitos, não importa mais o que o político é, mas o que ele parece ser.

Valor: Como resgatar a honestidade, a ética, que, pelo que se pode constatar, nunca estiveram tão ausentes quanto nas últimas recentes legislaturas, inclusive a partir de quem deveria dar o exemplo por estar no comando?

Delgado: Acabar com a casa de tolerância ao erro que virou o parlamento e fazer, pela prevalência de normas rígidas de conduta, que o senso de dever predomine sobre o senso de interesse. Acabar com esse arranjo institucional promíscuo e antieleitor. Toda a integridade do eleito está baseada no seu próprio caráter, formação e convicções pessoais anteriores à sua entrada no sistema político. Não dá para continuar como está: o honesto eleito é visto como desonesto por estar num ambiente de impunidade; e o desonesto eleito se sente em casa e ainda ri de quem não lhe faz companhia. Em virtude do alto custo individual da eleição, preservar o mandato ficou mais importante do que exercê-lo e sumiu da agenda política a luta pela autonomia e a cidadania plena do eleitor.

Valor: O eleitor não tem nenhuma proteção contra o mau parlamentar, não tem como substituí-lo e o corporativismo não deixa que seja punido com o desligamento aquele que agir contra o interesse da sociedade, e há muitos desse tipo.

Delgado: Com o modelo atual não, pois as leis são arcaicas. Hoje, o sistema comercial está mais avançado na defesa do consumidor: se posso devolver um carro com defeito, por que não posso devolver um deputado estragado? Há uma desescalada de valores e um fundamento negativo no discurso político, ou seja, uma embromação. Por isso, soberania popular, autonomia do voto, controle da qualidade do mandato e modernização do sistema eleitoral e partidário que faliu não estão verdadeiramente na ordem do dia. Em política, parece que tudo nasce original e termina como cópia.

Valor: Não deveria se dar no Legislativo o melhor ambiente para o exercício da política partidária na essência de suas propostas?

Delgado: Desde que fosse um ambiente de polêmica e não de rixa, como se transformou. A opinião superficial ou a contestação tola que alimenta o noticiário político do dia a dia tem como único objetivo a crispação. Querer o mal para o outro e isolar em guetos os fatos relevantes. É um arsenal de habilidades sem qualquer horizonte ou princípio. A partidarização de tudo é a maior doença da política e um expediente para afastar do seu meio a reflexão crítica de longo prazo. Os maiores desafios brasileiros - justiça, juventude, industrialização, educação, energia, ciência, previdência, violência - não cabem no confronto partidário, que é sem substância, artificial e eleitoralista.

Valor: Estamos com o parlamento de mais baixa reputação da história?

Delgado: Dizem que sempre piora a cada eleição. Quem compra voto não compra o decoro. A ideia da reputação não é mais muito importante entre nós. Mas, sem hierarquia de valores ou autoridades morais reconhecidas pela nação, qualquer um sente-se no direito de agir de qualquer maneira.

Valor: O desiludido com a política é desiludido com o parlamento, com os políticos, com as autoridades, com a falta de resultados, com o eleitor?

Delgado: E com o cada vez menor espaço para a liberdade de opinião. A política perdeu a utopia e não se regula mais pela economia dos signos e desejos, mas pela economia pura do comércio de interesses. A despolitização e privatização da prática política ameaçam a qualidade do processo democrático.

Valor: Vai se candidatar a um novo mandato?

Delgado: Mantenho minha coerência e liberdade. O eleitor que avalie. Nunca tive obrigação pessoal de vencer, mas de ser candidato das ideias que defendo desde professor. Há uma reciprocidade de expectativa entre o candidato e o eleitor. A obrigação do candidato é fazer campanha, mas a informação sobre a eleição depende muito do eleitor. Fui o mais votado do PT de Minas na Constituinte, quando não imaginava vencer. Nunca perdi na oposição. Fiquei suplente no governo quando não supunha perder. Tudo é política, mas a política não é tudo, aprendi com Bobbio [Norberto]. Minha utopia de desiludido. Quem sabe eu volto a me iludir diante de tanta coisa por fazer, mesmo diante do desafio que é buscar 80 mil mineiros que também pensem assim.

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