terça-feira, 1 de junho de 2010

Dr. Rosinha: A indignação seletiva de Serra

Contra a Bolívia, a indignação seletiva de Serra

por DR. ROSINHA

…guarden con amor sus hojas y cuando sientan dolor en su corazón, hambre en su carne y oscuridad en su mente…
llévenlas a la boca y con dulzura extraigan su espíritu que es parte del mio…
obtendrán alimento para su cuerpo, amor para su dolor y luz para su mente…

“A lenda da coca”, Antonio Diaz Villani

++ Culpar a Bolívia e não mencionar Peru e Colômbia é uma amostra da indignação seletiva do PSDB. Não interessa aos tucanos atacar os direitistas Alan García e Alvaro Uribe

Qualquer candidato, quando decide partir para uma disputa eleitoral, sabe de antemão se a sua própria candidatura é para valer ou apenas para disputar. Não importa em que lugar esteja nas pesquisas, quando a candidatura é mesmo para valer, os temas são tratados com seriedade, respeito e modéstia. Nada de arrogância. Nada de mentiras.

As recentes declarações de José Serra atestam que sua candidatura não é para valer. É impensável que um candidato à Presidência da República trate um tema fundamental como o da política externa com tamanha insensatez, desinformação, desrespeito.

O ‘presidenciável’ tucano só age assim porque se deu conta de que a sua candidatura não é de fato para valer – é só para disputar.

Semanas atrás, Serra declarou que o Mercosul é “uma farsa”. Com que cara, no caso de uma eventual vitória eleitoral, participaria das reuniões semestrais com os demais presidentes do bloco –Cristina, Lugo, e Mujica–, supostos promotores de “uma farsa”?

Em relação à Bolívia e a Evo Morales, fez pior. Em entrevista a uma rádio carioca, Serra disse o seguinte: “Você acha que a Bolívia iria exportar 90% da cocaína consumida no Brasil sem que o governo de lá fosse cúmplice? Impossível. O governo boliviano é cúmplice disto”.

Para além da notória gafe diplomática, a declaração do candidato tucano não encontra respaldo em fatos. Conforme o último relatório do UNODC (United Nations Office on Drugs and Crime), de 2009, a Bolívia é apenas o terceiro cultivador de folha de coca. Em primeiro lugar aparece a Colômbia (81 mil hectares), seguida do Peru (56 mil). A Bolívia tem em torno de 30,5 mil hectares. Colômbia e Peru, portanto, cultivam 4,5 vezes mais folha de coca que a Bolívia.

Embora o mesmo relatório registre em 2008 um ligeiro aumento das áreas cultivadas no Peru (4%) e na Bolívia (6%), a atual área em território boliviano é significativamente inferior aos números da década de 1990.

Em 1994, por exemplo, a Bolívia tinha inclusive uma área de cultivo de coca maior do que a Colômbia (48,1 mil hectares contra 44,7 mil, respectivamente). E não consta que, ao longo de toda a década de 90, José Serra tenha dado alguma declaração sobre o tráfico na Bolívia. Afinal, quem governava o país vizinho, na época? Seus aliados ideológicos – uma elite preconceituosa e de direita, submissa aos Estados Unidos.

Ainda de acordo com o relatório do UNODC, a quase totalidade da cocaína consumida nos EUA vem da Colômbia, e passa pelo México. Em relação à Europa, as estatísticas feitas com base nas apreensões indicam que 48% dos países europeus apontam que a cocaína lá consumida tem como principal fonte a Colômbia, seguida do Peru (30%). A Bolívia é mencionada em apenas 18% dos países europeus.

O relatório não apresenta dados específicos sobre o consumo no Brasil. Já o “CIA Factbook” também menciona que a Colômbia é responsável pela “quase totalidade” da cocaína consumida nos EUA, e pela “grande maioria” da cocaína consumida em outros mercados. O mesmo documento cita a Bolívia como “país trânsito” da cocaína refinada que vem da Colômbia e do Peru, destinada ao Brasil, Argentina, Chile e Europa.

Na realidade, a Bolívia nunca teve grande capacidade de refino. Na cadeia da cocaína, é essencialmente um país primário-exportador e corredor de trânsito. O tráfico e o refino mundiais são oligopolizados pelos grandes cartéis colombianos.

Assim, o percentual mencionado pelo candidato tucano, segundo o qual 90% da cocaína consumida no Brasil seria exportada pela Bolívia, não se sustenta em dados concretos.

Culpar a Bolívia e não mencionar o Peru e, acima de tudo, a Colômbia, é mais uma amostra da indignação seletiva dos tucanos. Não interessa ao PSDB atacar os governos direitistas de Alan García e Alvaro Uribe.

Vale lembrar ainda que as autoridades brasileiras, inclusive as estaduais, também têm sua parcela de responsabilidade. Sabe-se, por exemplo, que o Estado de São Paulo é usado como centro de distribuição de drogas no Brasil. O relatório da UNODC menciona que boa parte da cocaína que chega à África passa pelo Brasil.

Daí a afirmar levianamente que os governos paulista e brasileiro são cúmplices de traficantes vai uma distância enorme.

Observe-se, finalmente, que o consumo da folha de coca não é ilegal na Bolívia. A nova Constituição da Bolívia reconhece o hábito de mascar folha de coca como um patrimônio cultural ancestral do país. O chá de coca é uma infusão da milenar tradição indígena.

De tudo isso, um fato torna-se cada vez mais incontestável: o pré-candidato José Serra precisa de luz para sua mente.

Dr. Rosinha, médico pediatra, é deputado federal (PT-PR)

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