quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Pequeno balanço

Sírio Possenti
De Campinas (SP)


Finais de ano costumam ser ocasião para balanços. Os jornais e TVs fazem suas retrospectivas, boas ou banais, em todos os campos: esporte, política, artes (os melhores livros, discos, peças de teatro...). Jornais e revistas organizam páginas com as frases do ano - às quais comparecem, misturados, personagens como Ronaldo, Sabrina Sato, Lula, Bento XVI.

Não vou fazer algo do gênero. Vou comentar duas ou três coisas, mais ou menos fora de minha esfera normal de atuação (ou nem tanto, dado que sempre me refiro à falação generalizada).

Sobre Lula vs FHC, o que mais se ouve são dois discursos: 1) Lula não teria sido nada sem FHC, pois fez exatamente o que seu antecessor fez, no que é relevante, ou seja, seguiu sua política econômica; 2) que Lula inovou, especialmente com uma política econômica de alcance social, que não inclui apenas a bolsa família (embora não a exclua, claro), mas também políticas de crédito profundamente diferentes e, especialmente, aumentos de salário mínimo e diversos incentivos ao consumo (ao invés de assustar na crise, mandou gastar e diminuiu certos impostos para facilitar a opção).

Ler sobre isso me interessa. Mas o que mais me interessa na comparação dos dois presidentes são duas atitudes (que já mencionei diversas vezes em textos anteriores). Para mim, a diferença básica entre FHC e Lula tem a ver com o funcionamento das instituições, especialmente no que se refere a duas questões:

a) FHC mudou a Constituição para permitir sua própria reeleição - o que é uma forma de golpe. Lula poderia ter tentado um terceiro mandato, como Chávez, sempre muito comentado, ou como Uribe, pouquíssimo (porque o que não se pode à esquerda se pode à direita, segundo a opinião de nossa imprensa e de "nossos" ex-ministros de Relações Exteriores). Lula não tentou. Pode ter sentido coceiras variadas, ter curtido a tentação de amigos de apresentar uma emenda, mas o fato é que tal movimento não ocorreu. Houve muita especulação, muitos apostavam que ele tentaria. Os fatos os desmentiram.

b) a segunda diferença fundamental tem a ver com o funcionamento da Procuradoria Geral da União: Lula indicou três ocupantes para o cargo. Os três promoveram ações que mostraram sua independência. O caso mais notório foi a acusação apresentada ao Supremo no caso do mensalão. Lula pode pensar o que quiser do caso: o fato é que o Procurador Geral disse que havia uma quadrilha. Ora, o comportamento do ocupante do mesmo cargo nos governos FHC (ele ficou lá o tempo todo) o tornou conhecido como "engavetador geral da república". Pode apostar: se um caso como o mensalão tivesse ocorrido durante o governo FHC (e não nos enganemos: houve vários, inclusive aquela compra de deputados no episódio da votação da emenda da reeleição), o Procurador teria engavetado o processo.

Dizer isso não é fazer a defesa de todas as ações de Lula nem condenar todas as de FHC. É reconhecer uma diferença fundamental entre eles em relação ao funcionamento impessoal das instituições. Que é, afinal, o que a maioria da oposição pede: que o governo deixe de ser personalista etc. Lula é personalista. Seu ego só é batido pelo de FHC. Daí uma pergunta que não pode ser respondida: se FHC tivesse a popularidade de Lula em 2001, alguém teria proposto outra reforma para possibilitar-lhe uma re-reeleição? Eu aposto que sim!

Um comentário final: foi dito e escrito milhares de vezes que Lula tentaria um terceiro mandato. Depois, que buscaria um cargo na ONU. A primeira profecia foi para as cucuias. A segunda foi desmentida de tal forma, talvez até deselegantemente (Lula disse mais de uma vez que o Secretário Geral da ONU tem de ser um burocrata, e não um "político forte", mais forte que muitos governantes - claro, falava dele mesmo) que qualquer mudança de posição seria um desastre. E Lula mostrou que pode não ter lido Proust, mas bobo ele não é.

Agora, as especulações são sobre sua volta em 2014 e/ou sobre o quanto mandará no governo Dilma. Minhas previsões: não mandará nada no governo Dilma (achar que mandará é não saber nada sobre ele, parece, e, principalmente, sobre ela); e não voltará - não tentará voltar - em 2014.

Mas, e o ego dele? Exatamente por isso...


Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.

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