quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O sucesso de Lula foi fazer um governo sem maldades

De Luciano Suassuna - iG

Dentro de 48 horas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva verá a roda do destino girar num sentido que ele nunca conheceu. Pela primeira vez na sua história pública, Lula acordará a cada dia com menos poder que na noite anterior. De funcionário do sindicato a presidente dos metalúrgicos do ABC, de candidato derrotado ao governo de São Paulo a deputado constituinte, de presidente do PT a presidente da República com maior aprovação popular da história, Lula passou quatro de seis décadas de vida numa escada em que, ao final de cada etapa, os degraus o conduziam sempre para cima.

No imaginário popular, ele chegou ao cume e no alto deverá ficar. E mesmo que o tom messiânico das últimas declarações deixem entrever um presidente em processo de auto-idolatria, o fato é que Lula chegou lá por ter feito um governo simples, quase óbvio. Para ficar apenas num dado: ele foi o único presidente da redemocratização a não tomar nenhuma medida que interferisse negativamente no cotidiano das pessoas. Em outras palavras, toda uma geração de brasileiros conheceu pela primeira vez, enfim, um governo que não atrapalhou sua vida, que não mudou as regras por ele mesmo estabelecidas. E isso é ainda mais surpreendente quando se recorda que o PT que chegou ao governo agiu, em muitas áreas, de maneira inversa ao que apregoava quando era oposição.

Quando se olha Lula na comparação com seus antecessores mais recentes, ele deveria ser homenageado pelo que não fez. Lula não promoveu nenhum congelamento, nenhuma mudança de moeda, nenhuma tablita de conversão de valores, nenhum expurgo de índice inflacionário, nenhum bloqueio de depósitos em conta corrente, nenhum depósito compulsório, nenhuma moratória, nenhuma maxidesvalorização do Real, nenhuma banda hexagonal endógena, nenhum racionamento de energia. Não alterou a Constituição para prolongar o mandato, não modificou a legislação eleitoral para favorecer os candidatos de seu partido (ou ao menos prejudicar os adversários).

No início do primeiro governo, parte do funcionalismo acreditou que ele abriu o saco de maldades ao propor ao Congresso a reforma da previdência. Ela alongou a idade mínima para aposentadoria (60 para homens, 55 anos para mulheres), estabeleceu teto de remuneração e impôs a contribuição para inativos, os 11% de taxação, que constituíram a única interferência direta desse governo sobre uma fatia grande da população. Mas sua maior derrota no Parlamento foi uma vitória do resto da sociedade: o fim da CPMF, o imposto sobre cheques.

As maiores críticas dos adversários do governo Lula estão no que poderia ser chamado de saco de bondades do governo – a excessiva complacência ou dependência dos gastos estatais. Lula aumentou o número de funcionários e o salário de inúmeras categorias, ampliou a força de bancos e empresas estatais, autorizou poucas concessões e paralisou privatizações. Durante a crise econômica mundial de 2008, adotou as chamadas medidas anticíclicas: aliviou o Imposto de Renda e reduziu a carga tributária de alguns setores econômicos.

Mas o primeiro presidente que não mudou a estrutura macroeconômica fez muito no campo das mini-reformas. Seguem apenas algumas, das muitas que permitem entender como elas criaram o mais firme ciclo de prosperidade da história nacional:

1) O Bolsa Família ajudou a reduzir em dois terços os números da pobreza extrema no Brasil, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social.

2) A alienação fiduciária permitiu aos bancos emprestar mais e também mais rapidamente, graças à garantia de, em casos de maus pagadores, retomar prontamente o bem financiado. Isso foi vital para que o Brasil encerrasse 2010 na condição de quarto mercado consumidor de automóveis do mundo.

3) Medidas que garantiram o pagamento do valor incontroverso em questionamento de financiamento habitacional, Cédulas de Crédito Imobiliário e Letras de Crédito Imobiliário, entre outras, foram fundamentais para a reativação da indústria da construção civil.

4) O crédito consignado reduziu a mais da metade a taxa de juros cobradas do tomador e deu a partida na ampliação do mercado interno na medida em que ajudou a criar o circulo virtuoso de mais consumo, mais produção e mais emprego. Financiada por esses e outros instrumentos, uma legião de novos consumidores primeiro comprou uma televisão mais moderna, depois trocou a geladeira, adquiriu o primeiro carro zero quilômetro e finalmente entrou no financiamento da casa própria.

5) O ProUni permitiu o ingresso de meio milhão de jovens carentes no ensino superior.

6) A Cédula de Crédito Bancário, chamada de LCA, facilitou o investimento na produção agrícola.

7) O crédito total no Brasil praticamente dobrou em oito anos, atingido hoje quase metade do PIB. Em valores nominais, a conta é mais expressiva: R$ 1,64 trilhão.

8) A Lei de Recuperação Judicial, espécie de nova lei de falências, criou condições para as empresas renegociarem suas dívidas sem comprometer a produção e o emprego. Estima-se que ela levou a uma redução de 65% no número de pedidos de falência.

No próximo domingo, quando retornar àquela cobertura em São Bernardo do Campo para começar uma rotina ainda indefinida, o presidente terá de conviver com esse passado de sucesso. Quando não estiver cumprindo a nova agenda de seminários, palestras e conferências internacionais, que já se prevê extensa, Lula deverá ser uma espécie de oráculo do PT, recebendo consultas e dando conselhos a amigos do partido, assim como Fernando Henrique Cardoso fez no PSDB.

Dependendo do que o próximo governo, ou o seguinte, vierem a fazer, ficará a questão: se o Brasil chegou a crescer a quase 8% no seu último ano na Presidência e acumulou 15 milhões de novos empregos nos oito anos do mandato, o que teria acontecido se, além das micro-reformas, Lula tivesse empreendido algumas das famosas mudanças estruturais que o Brasil precisa:

1) Uma legislação trabalhista menos onerosa para quem emprega e mais adequada a essa economia de serviços que se firmou nos oito anos de mandato.

2) Uma reforma tributária que, no lugar de olhar a repartição das receitas entre governadores, enxergue o Brasil como um competidor global, facilitando o trabalho das empresas que têm vocação e capacidade para ganhar mercados em qualquer lugar do mundo.

3) Uma série de concessões e privatizações que traga o abundante capital externo para projetos de longo prazo de infra-estrutura: duplicação de rodovias, ampliação dos aeroportos, modernização dos portos, construção de ferrovias, integração do transporte urbano nas grandes cidades.

4) O investimento pesado na formação de professores e a criação do tempo integral nas escolas públicas.

5) A adoção de uma política nacional de segurança pública, com parâmetros de treinamento, equipamento e correição para as polícias de todos os Estados.

Ao contrário de seu antecessor, Lula terá nos próximos tempos uma expectativa de retorno à Presidência para alimentar sua força. Para que a roda do destino mantenha-se girando na mesma direção de sempre, ele precisa exercer essa expectativa e começar a planejar o que seria o Brasil numa espécie de “Lula de novo”. Mas cada passo nesse caminho terá quase sempre duas leituras: agora vai ser visto como um golpe contra sua eleita, a presidenta Dilma Rousseff. E na relação com a história pode comprometer esse passado de sucesso e realizações ao suscitar a questão do por que não fez antes? Mas saber se reinventar, e por vezes virar o jogo, são as maiores virtudes de Lula.

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